sexta-feira, 24 de junho de 2011

Sobre o Cinema Pernambucano !!!

Há dez anos, a idéia de um cinema feito em Pernambuco era retomada através de Baile Perfumado, o filme de Paulo Caldas e Lírio Ferreira que quebrava um jejum de 18 anos sem que o estado produzisse um longa metragem. Foi em 1978 que o cinema pernambucano mostrara a sua última realização - O Palavrão, de Cleto Mergulhão -, obra que, mesmo digna de nota, teve pouca, ou nenhuma repercussão nacional, ou mesmo local. Com a exceção do histórico «Ciclo do Recife», que viu uma dezena de títulos realizados nos anos 20, Pernambuco nunca realmente produziu longas com naturalidade e frequência, algo que faz dos dez anos que separam Baile Perfumado da atual safra 2007 uma década que já deve ser vista como notável, um novo ciclo que, inclusive, não dá sinais de que terá um fim próximo. Este ano, mais quatro longas garantem esta continuidade.

Vale a pena observar que na última década, e pelas nossas contas, nove longas surgiram no estado, todos finalizados - Baile, O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas, Amarelo Manga, Cinema Aspirinas e Urubus, Árido Movie, Orange de Itamaracá, Baixio das Bestas e Deserto Feliz, aqui realizados por pernambucanos, e com misto de recursos locais e nacionais. Com a promessa para o segundo semestre de Amigos de Risco, de Daniel bandeira (em finalização), surge agora mais um, o documentário de 80 minutos O Coco, a Roda, O Pnêu e o Farol, de Mariana Brennand Fortes, que estreou via Cine PE.

É emblemático que nesses dez anos, Assis e Caldas tenham, apenas entre eles dois, cinco longas metragens feitos em Pernambuco, com equipes e, na maioria dos casos, financiamentos parcialmente pernambucanos. Em 1999, Caldas dirigiu, em parceria com Marcelo Luna, o documentário O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas, sobre a desigualdade social que leva uns à criminalidade, outros à expressão artística. Em 2002, Assis lançou seu primeiro longa, Amarelo Manga, uma crônica sobre um certo estado de espírito da cidade do Recife.

Seus filmes atuais não apenas revelam-se semelhantes em temática e visão social, mas também simbolizam a ação de um grupo de realizadores que formou-se nos anos 80, não exatamente no sentido acadêmico, mas num cinema feito empiricamente em Pernambuco, através do curta metragem.

Assis, inclusive, trabalhou em Baile Perfumado (foi diretor de produção), filme que é hoje visto como «marco zero» desta nova fase, com um cinema reconhecido dentro e fora do país, e com média alta de acertos que fazem de Pernambuco a principal referência de produção realizada fora do eixo Rio-SP, posição que já foi ocupada pelo Rio Grande do Sul.

De 1997 (ano de lançamento nos cinemas de Baile Perfumado) até março de 2007, Pernambuco produziu oito filmes de longa metragem, todos finalizados, número inusitado não apenas por suplantar totalmente os 18 anos infrutíferos que vieram anteriormente, mas também pelo fato de não existir ainda uma política forte de apoio ao cinema no próprio estado.

Em Pernambuco, realizadores contam com o concurso Ary Severo-Firmo Neto de roteiros para curta metragem (dois roteiros contemplados por ano) e com mecanismos de incentivo via Prefeitura do Recife e Funcultura (Governo de Pernambuco), que nos últimos quatro anos apoiou produções em todas as áreas artísticas realizadas no estado, o cinema aí destacado.

Pernambuco segue também sem escolas de formação, equipamentos (câmeras, laboratórios) ou um edital específico para estimular longas metragens. Dinheiro de fora, via editais federais ou da Petrobras, têm sido essenciais para viabilizar os filmes pernambucanos deste atual ciclo.

Voltando à idéia de uma média alta de acertos, eles podem ser medidos, em especial, via repercussão na crítica e prêmios em festivais, prestígio artístico que produções comerciais recentes com penetração bem maior no mercado (vide a grande maioria dos produtos Globo Filmes) simplesmente não conhecem. Nesse sentido, apenas um dos filmes dessa leva recente não conseguiu, infelizmente, o tipo de exposição que tem sido observada, o docu-drama Orange de Itamaracá, de Franklin Jr., exibido no Cine PE 2006 - Festival do Audiovisual, no Recife.

Baile Perfumado, por exemplo, estreou no Festival de Brasília de 1996, de onde saiu como múltiplo vencedor daquela competição. O filme é tido hoje como um marco da chamada « Retomada », termo usado para definir o período que viu o cinema brasileiro se levantar ainda bastante grogue do desmonte causado pela era Collor. Considera-se que a Retomada tenha como fim o ano de 2002.

Com a sua seleção para o Festival de Veneza de 1999, O Rap do Pequeno Príncipe inaugurou o curioso acesso que os filmes de Pernambuco têm tido aos festivais internacionais mais importantes do mundo como Cannes, Berlim, Veneza e Roterdã, fator que impressiona pelo fato de serem estes festivais os destinos mais desejados de realizadores em todo o mundo, e no Brasil isso não seria diferente.

Amarelo Manga foi apresentado em Berlim 2003, Cinema Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes, estreou em Cannes 2005, e Árido Movie, de Lírio Ferreira (seu primeiro filme desde Baile Perfumado), em Veneza (2005). A repercussão de Cinema Aspirinas e Urubus foi particularmente grande, filme que percorreu festivais importantes em todo o mundo e terminou sendo o escolhido pelo Brasil para representar o país numa hipotética indicação ao Oscar (que não se materializou). Com cerca de 120 mil espectadores, é também o filme pernambucano mais visto nos cinemas brasileiros, ao lado de Amarelo Manga, que obteve números semelhantes.

Há dois meses, mais duas participações importantes: depois de ganhar o último Festival de Brasília em novembro (Amarelo Manga havia conquistado o mesmo festival em 2002, seis anos depois de Baile Perfumado), Baixio das Bestas teve a sua estréia internacional na 36a edicão do Festival Internacional de Roterdã, de onde saiu com um dos prestigiosos prêmios Tiger de Melhor Filme, concedidos para primeiras ou segundas obras em competição. O filme seguiu para Toulouse, França. Uma semana depois, Deserto Feliz teve sua estréia mundial no 57o Festival Internacional de Cinema de Berlim, dentro da mostra Panorama.

Acompanhar a construção de uma filmografia é sempre algo revelador. A cada filme surge um novo capítulo que contribui para a compreensão de um todo, um pouco como ler um livro cujo sentido geral se forma diante dos olhos. Ano passado, publiquei na Continente Multicultural (saiu também na www.revistacinetica.com.br e aqui no site) um apanhado geral sobre as temáticas abordadas por cineastas pernambucanos - Lírio Ferreira, Paulo Caldas, Marcelo Gomes, Cláudio Assis, João Falcão, Guel Arraes -, e como, de alguma forma, filmes diferentes encontram pontos em comum, talvez revelando raízes comuns. A presença do personagem estrangeiro, a representação moderna (ou pop) da paisagem arcáica do sertão, a aproximação deste cinema em relação ao urbano... Nesse sentido, e já falando dos filmes mais novos para 2007, é impossível abordar Deserto Feliz e Baixio das Bestas sem situá-los numa filmografia que vem tomando corpo ao longo dos últimos dez anos, filmografia que precisa também abrir espaço para obra tão incomum quanto Cartola, o novo filme de Hilton Lacerda e Lírio Ferreira .

Os dois primeiros são tematicamente semelhantes, embora cada um tenha escolhido instrumentos de linguagem distintos. 'Baixio' tem crença firme na força de cada um dos seus quadros. Deserto sugere uma incerteza de imagem que parece emular o quão perdida está a sua personagem. Assis define-se como controlador onipresente do seu filme. Caldas acompanha a sua personagem com uma curiosidade que também parece ser a sua em relação ao seu filme.

São longas que abordam, em linhas bem gerais, o corpo da mulher, idéia que parece ganhar o seu terceiro desdobramento em um ano se incluirmos também O Céu de Suely, de Karim Ainouz, que valida as alianças internas e criativas que existem nesta filmografia realizada temática e estruturalmente longe de um cinema do eixo Rio-SP.

Baixio das Bestas tem como cenário a zona da mata pernambucana, espaço-personagem que seria inédito até agora nesta filmografia pernambucana desta última década se não fosse pelo excelente curta metragem O Homem da Mata (2004), de Antônio Souza Leão.

Esse espaço mescla o verde da vegetação com o marrom do barro, a presença da água e também do fogo queimando cana, e parece agregar o pior que o ser humano tem para ofrerecer numa visão claramente artística do estado de coisas que Assis vê em termos de sociedade brasileira, ali representada num microcosmo. Em Roterdã, um crítico holandês escreveu: "pela visão do Brasil trazida por Baixio das Bestas, desconfia-se que o país nunca teve a sua moral tão no fundo do poço".

Nessa espécie de sucursal do inferno localizada a não mais do que uma hora de carro do Recife, Assis estabelece a visão do arcáico (o engenho e sua decadência canavieira) e traz o moderno através da proximidade com o urbano. Por vezes, Baixio das Bestas parece um filme de época, até que uma D-10, ou uma Honda CG-125 entra no quadro. No entanto, é o elemento humano que estabelece o grau de miséria, simbolizado, entre outros elementos dignos de nota, pelo antigo cinema abandonado do engenho (um dos personagens do filme), onde pelo chão ainda é possível encontrar restos de alguma cópia esquecida do clássico pornô brasileiro (anos 80) Oh! Rebuceteio!

Há prostitutas, caminhoneiros, jovens da localidade que estudam no Recife e voltam para aquela terra ainda mais sem lei nos finais de semana. Há vassalos "humildes" do engenho que servem de elo entre o velho e o novo (o maracatu e a motocicleta) e pelo menos uma figura patriarcal moralmente demente na sua total decadência. No fundo e nas laterais, caminhões de cana vão e vêm.

No centro de tudo, há uma menina de 13 anos (Mariah Teixeira, excelente), cujo corpo será desrespeitado das mais diversas maneiras. Do abuso, ela não resurgirá como um fênix, mas apenas continuará vivendo a sua vida triste, sendo promovida de criança violada a puta cheirosinha. É um filme duro, repleto de imagens poderosas (o fotógrafo Walter Carvalho no seu melhor momento) que criam tensão desconfortável entre beleza e feiúra, em planos frequentemente fixos onde a vida vai acontecendo.

Assis firma-se como o cronista mais ousado desta filmografia, e é verdade que esta ousadia passa pela dureza incomum no retratar. A imagem do ser humano está a anos luz da humanidade delicada de Cinema Aspirinas e Urubus, ou da imagem estilizada do interior vista em Árido Movie. Baixio das Bestas termina fotografando um lugar real, e povoando-o com a sua própria interpretação da realidade.

Em Deserto Feliz, Paulo Caldas também vê numa garota (Laila Nash) o ponto de partida para o seu filme. Os abusos sexuais que ela sofre no sertão verde de Petrolina são o combustível para fugir e tentar algo de novo, em direção ao leste. É emblemático que os dois filmes tragam cenas importantes em bares de beira de estrada, frequentados por caminhoneiros à procura do que nos parece ser a mesma menina.

De vítima do padrasto em Petrolina, a garota vai a prostituta de Boa Viagem e moradora do Edifício Holiday. Lá, conhece o mito do alemão loiro sugerido por Clarice Lispector em A Hora da Estrela e, numa outra leitura, repetindo o elemento estrangeiro que existe nesta filmografia - o libanês Benjamim Abraão de Baile Perfumado, o alemão Johan de Cinema Aspirinas e Urubus (interpretado pelo mesmo Peter Ketnath em Deserto Feliz), o homem da meteorologia paulistano de Árido Movie -. E ela segue para Berlim, onde a narrativa dramaticamente vaga do filme não parece encontrar um pulso, provável representação da personagem em si, e seu senso de inadequação.

Tematicamente, Deserto Feliz apresenta a primeira tentativa de o local sair e interagir com o mundo exterior, refletindo um dos temas mais recorrentes do cinema internacional (globalização, a divisão mundo rico-mundo pobre), mas agora com ponto de vista brasileiro e local. Com Deserto Feliz, a filmografia se abre para o mundo, e isso não deve ser visto necessariamente como algo positivo, ou negativo. É apenas fato.

Cartola, de Hilton Lacerda e Lírio Ferreira, revela-se uma experiência quase tão distante do sertão, ou da zona da mata, como Berlim. O roteirista de Baixio das Bestas e o diretor de Árido Movie, ambos pernambucanos, debruçaram-se sobre um mito brasileiro e carioca, e fizeram um documentário (na falta de um termo mais adequado) que, se fosse um músico, sugere o equivalente a jogar fora toda e qualquer idéia de partitura.

Estamos diante de um trabalho de cunho experimental que acredita não apenas no tesouro de músicas deixadas por Cartola, mas num exercício originalíssimo de montagem e arquivo. O resultado é claramente um esforço de intuições artísticas acertadas que passam a impressão de organicidade de imagem, som e letras cantadas que já seriam capazes de falar sozinhas. Bem mais uma exploração da figura cultural, artística e poética Cartola, e menos o homem num sentido de "biofilme" (problemas pessoais, drogas, etc), esse filme é uma conquista e tanto da dupla.

O documentário brasileiro é frequentemente apontado como a melhor das áreas de produção no cinema brasileiro. Nos últimos dez anos, com a chegada do digital (tanto no sentido de imagem como montagem e apresentação), esse gênero tem revelado uma leveza e espontaneidades que não são normalmente encontradas no cinema de ficção. Cartola é um dos melhores representantes desse cinema de documentário visto e ouvido recentemente.

Sobre o longa O Coco, a Roda, O Pnêu e o Farol, de Mariana Fortes, o mesmo surgiu de repente para a surpresa de alguns (eu incluído), na lista de selecionados do Cine PE 2007. A surpresa veio do fato de o filme ter estado meio que fora do radar de produções pernambucanas esperadas para 2007, embora o seu processo de produção e montagem tenha tido início há dois anos.

Eu acho que esse filme, e o seu surgimento agora, revela algumas das mudanças essenciais que têm mexido com o "fazer cinema" ao longo da última década, em especial no sentido técnico. O processo está mais acessível, e os filmes mais próximos do executar, uma diferença abissal não apenas da experiência que Mergulhão teve em 1977/1978 ao fazer o seu O Palavrão, assim como o próprio Baile Perfumado em 1995/1996.

Conversei com Mariana, que explicou que a idéia veio como um simples suplemento multimídia para O CD Côco do Amaro Branco, incentivado pelo fundo de incentivo à - Funcultura, de Pernambuco. Fortes, da produtora pernambucana Mariola Filmes, tem parceria com os estúdios Fábrica, na Várzea, envolvidos com o projeto do CD.

"A idéia desenvolveu-se a partir do momento em que conheci os mestres do côco de roda na comunidade do Amaro Branco, em Olinda, Mestre dédo, Pombo Rôxo, Ana Lúcia, uma gente riquíssima de toda uma tradição oral, e que te pega pelo braço e sai mostrando o que fazem, aqueles que fazem, e como toda essa tradicão continua viva", explicou. Para ela, o filme abre uma janela para uma comunidade pequena suburbana, "o que me faz pensar na infinidade de outras histórias que estão aí para serem descobertas, e ou registradas em todo o estado, a grande maioria esquecidas, ou totalmente desconhecidas".

A diretora sugere também que há nos seus personagens uma mágoa pela falta de apoio à tradição da comunidade. "É um grupo pequeno e que sempre esteve lá, mas que ainda pena para ter voz". Ela informa que, embora grata pelo apoio da Prefeitura de Olinda ao próprio filme, a comunidade não obtém ajuda da mesma prefeitura para, por exemplo, um carro de som que seja, no período mais importante das manifestações, no calendário junino. "Ou seja, é irônico que o filme sobre a comunidade do Amaro Branco seja apoiado, mas não a comunidade em si", diz.

"Durante as filmagens do que achávamos que seria um curta, sentimos que o material rendia muito bem, ganhando desdobramentos. Registramos a procissão dos pescadores, a "buscada", o côco do pnêu, o "acorda povo" de Dona Ana Lúcia, mestre do côco e do pastoril". Mariana Fortes descreveu a experiência como riquíssima, e o filme abriu espaço no seu roteiro previamente escrito para acomodar as descobertas feitas ao longo do caminho.

O filme foi realizado com equipamento próprio, da Mariola Filmes. Foi rodado por dois fotógrafos - Pedro Von Krüger e Mariano Maestre - com uma câmera digital Panasonic DVX-200, que capta imagens a 24 quadros por segundo (qualidade maior para transferir para filme 35mm). O filme será apresentado já em cópia 35mm, trazida de São Paulo na última quinta-feira. "A parte de captação e producão foi feita no esquema conhecido como "brodagem", membros da equipe sendo pagos minimante e recursos próprios. Submetemos projetos de produção e finalização ao Funcultura, mas sem sucesso nas duas vezes".

A produção teve apoios do Atacadão GB, Quanta Recife, os Estúdios Fábrica fizeram a mixagem 5.1 no Recife e a Teleimage, laboratório de São Paulo, entrou como co-produtores. Ela informa ainda que, recentemente, o Governo de Pernambuco apoiou com uma verba direta, viabilizando o processo de finalização. O orçamento final deste longa - 80 minutos - ficou em cerca de R$ 250 mil.

Este é o primeiro filme de Mariana Brennand Fortes. Ela estudou cinema na Universidade de Santa Bárbara, na Califórnia, e produziu dois curtas, dirigidos pela também iniciante Débora Mendes, Tantas e Tantas Cartas (ficção) e As Letras Verdes (documentário), ambos inéditos. Mariana trabalha também no seu segundo longa, cuja produção teve início antes mesmo de O Coco, a Roda, O Pnêu e o Farol começar a existir. Chama-se O Convidado da Floresta e enfoca a vida e obra do artista plástico Francisco Brennand.

FONTE:

Os Longas Pernambucanos de 1997 a 2007

Por Kleber Mendonça Filho

Fonte: http://cf.uol.com.br/cinemascopio/artid.cfm?CodArtigo=104

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