sexta-feira, 12 de junho de 2009

Entrevista com Claudio Assis na Época do Amarelo Manga.

Entrevista com Claudio Assis

Claudio Assis lança ainda em agosto o muito aguardado Amarelo Manga, que estreou no Festival do Rio de 2002 e desde então colecionou prêmios em Brasília e no Cine Ceará, além de uma passagem feliz pelo Festival de Berlim. Trata-se, desde já, de uma das mais contundentes estréias da fase pós-95 do cinema nacional, nem só pelo filme quanto pela postura e personalidade afeitas a polêmica do seu diretor. Conversamos com Assis sobre isso tudo e muito mais.

Contracampo: O filme situa muito bem os personagens em seus ambientes físicos e em seus universos sociais, em uma descrição documental de seus meios, mas a ficção é assumida como tal naquela realidade. Ela faz questão de interferir no real por meio de uma afirmação de estilo.

Claudio Assis: Nosso desafio era sair da ficção, entrar no documentário e voltar para a ficção. O desafio era fazer isso sem agredir o espectador. Queríamos fazer mais cenas documentais, mas na rua o bicho pega. Não teríamos como manter controle.

Contracampo: Você parece estar em busca de uma marca com o filme. Tão importante quanto os personagens e a descrição do mundo deles é a maneira escolhida para se filmar. Isso foi planejado anteriormente ou surgiu no processo?

Claudio Assis: Eu não faço story board. Não gosto quando sei o que vai acontecer no set. Não quero aprender a fazer assim, não tenho vontade e não tem nada a ver comigo. Quero emoção, que as pessoas sintam o que estão fazendo naquele momento, o da filmagem, e isso a gente descobre na hora. Não cenografo apenas uma parte do cenário para só filmar aquele canto. A câmera vai para todo o canto, tem de estar tudo cenografado, se não fico escravo de um limite. Amarelo Manga é um filme difícil. Trata da miséria humana. Se não buscarmos uma elegância no movimento de câmera, no enquadramento, no desenho das cenas, fica um negócio feio e podre. Uma das minhas preocupações era fazer com que as coisas não ficassem restritas. A gente se preocupou ao máximo para haver prazer em se ver o filme. Isso interefere em todos o processo. É como o americano faz, mas do nosso jeito, filmando nosso povo.

Contracampo: Qual a origem do filme?

Claudio Assis: Um crítico da Set disse que o Amarelo Manga, veja isso, é consequência do Texas Hotel. Mas quem disse isso a ele? Por que ele não me ligou? Quando eu fiz o Texas, já existia o roteiro do Amarelo Manga. Há apenas o mesmo ambiente. Então estou plagiando a mim mesmo?

Contracampo: Mas qual a idéia inicial? Você queria estrear em longa e foi atrás de um filme, ou queria estrear com este filme em específico?

Claudio Assis: Walter Carvalho chegou um dia a pedir para eu desistir desse projeto. Disse que não ia. Passei seis anos viabilizando esse filme e só me interessava fazer ele. O projeto surgiu de várias coisas. Eu tinha um TL cujo nome era Amarelo Manga, que foi incendiado em uma oficina. Também tinha o púbis de uma garconete, que eu conhecia, e queria usar de alguma forma no filme. E isso veio a calhar com aquele poema do Renato Carneiro Campos. Mas o filme não existe por causa do poema e, sim, por causa do meu carro e do púbis de uma mulher. Daí surgiu o nome. E o amarelo é a cor do Nordeste.

Contracampo: Mas para além do púbis da mulher e de seu carro você já tinha idéia de filmar esse ambiente social?

Claudio Assis: Já sim. A idéia me veio de uma provocação gerada em mim pelo cinema americano. Eu odeio americano, mas é o filme deles que a gente assiste, pois é o que chega aqui, né? E eles fazem filmes em que os heróis saem matando gente, uma violência urbana desnecessária. O cara fica puto com o trânsito e sai matando o povo. Caralho. Violência por violência. Então ficava pensando: a gente tem uma violência nossa, cotidiana, dentro da nossa própria casa, que é tão violenta quanto filmes de Hollywood. Queria fazer um filme sobre essas pequenas violências, que fosse poético e violento ao mesmo tempo. Por isso o Jonas Bloch mata cadáver, quem já está morto, porque é um vício inofensivo, simbólico. Os outros elementos surgem daí, dessa violência dentro de nós.

Contracampo: A fala da Aleyonna Cavalli, no final, reflete uma impotência. E o filme evidencia essa impotência do povo para sair da situação na qual vive, principalmente naquela sequência, já no fim, na qual surgem vários rostos sem nenhuma esperança na expressão.

Claudio Assis: O que gerou a sequência dos rostos, no final, é a impotência e um chamado. É como se aqueles rostos dissessem: "Olhem para mim, eu sou esse tipo na miséria, tenho algo a dizer, quero comer, tenho tesão, quero me divertir". É um grito em silêncio para chamar atenção.

Contracampo: A personagem da Dira Paes e do padre em crise, em suas falas e atitudes, matam a possibilidade do sagrado, em um mundo de opressões, e a inevitabilidade do profano. Isso afasta o filme de uma visão comum, quando se filma personagens simples e populares, principalmente no Nordeste, de que o pobre é reserva ética do Brasil

Claudio Assis: Quem filma assim tem culpa e faz filmes de culpa. Por isso mostram que o pobre é bonzinho. Mas a vida não é assim não. Esses diretores precisam primeiro resolver o problema da alma deles

Contracampo: E quais filmes dos últimos anos retrataram o povo de forma satisfatória em sua visão?

Claudio Assis: Os de Eduardo Coutinho. Ele mostra o povo de forma honesta. Ele respeita

Contracampo: O que não é respeitar?

Claudio Assis: É você maquiar, tratar de maneira folclórica, glamourizar a pobreza. Não há verdade. Fazem entretenimento próprio para enganar os outros. Como nós podemos imitar os americanos? Temos uma cultura rica. Eles fazem o cinema deles muito bem. Temos de fazer o nosso.

Contracampo: O que você chama de imitar? Imita o que?

Claudio Assis: No formato, na maneira de contar a história, de construir personagens, criar conflitos. Os americanos tem "know how" de contar história. Nossas histórias precisam ser contadas de outra maneira. Somos outro povo. Não temos de imitar para ser aceitos. Eu não quero. Não quero ganhar Oscar. Temos de ganhar o povo da América Latina, temos de ter conversa com esse cinema, temos de buscar nossa identidade, que um dia tivemos, perdemos e estamos atrás dela de novo. Mas a maioria quer ir para o Oscar. Isso para mim não interessa.

Contracampo: Mas é importante o cinema brasileiro estar dentro da discussão de um cinema mundial. Para isso, é preciso se projetar para fora do país. Não competir no Oscar, mas existir internacionalmente.

Claudio Assis: Claro. Mas temos de ter antes uma política para chegar ao exterior. Sou contra é fazer filmes com características que achamos ser as que agradarão lá fora.

Contracampo: O Nordeste é uma ótima matéria prima para esse tipo de cinema rechaçado por você.

Claudio Assis: Porque é folclórico, o Brasil rural e arcaico. Mas também tem filme urbano assim, imitação de Tarantino.

Contracampo: Você se sente mais próximo do Cinema Novo, que tinha uma visão romântica e depositava no povo uma esperança de transformação social, ou do Cinema Marginal, que tem uma visão mais de impasse e não acredita mais em nada?

Claudio Assis: A menina da Folha de São Paulo me perguntou se eu queria ser o novo Glauber Rocha. Pô... Não quero ser ninguém. O cinema pode flertar com várias cinematografias. E quero fazer coisas diferentes, até um infantil, pois os infantis brasileiros são babacas e escrotos, um absurdo, tratam as crianças feito idiotas. Mas voltando à sua pergunta, acho que o filme aproxima-se mais do Marginal. Não pensei em fazer assim, mas trata de uma marginalidade. E é marginal também, pelo preço que foi. Deve ser mesmo uma nova leitura do cinema marginal. E isso me agrada muito

Contracampo: Mas a proximidade com o Marginal talvez esteja em uma visão de impasse. Há um grande bode, uma grande ressaca. Há até textos em off em que expressam idéias sobre uma falência da esperança. Principalmente no texto do padre, que não vê mais sentido em nada.

Claudio Assis: É. Mas deixa eu te contar uma coisa. Aquela cena em que o Chico Diaz entra no templo evangélico, sabe? A gente entrou filmando lá sem pedir autorização. Ele vinha vindo pela calçada e fomos entrando filmando. Não estava previsto não. Aconteceu de improviso. Aquela reação no templo, com o povo gritando "sai satanás, fora capeta", aconteceu de verdade. É uma loucura o que a religião faz com o povo. Ela acaba com as culturas. Não permite que você beba, não permite que você dance. Em todo o canto, tem essa peste. Por isso o filme tem tanta igreja.

Contracampo: Quais as dificuldades adicionais para um nordestino fazer cinema no Nordeste?

Claudio Assis: Todas. Temos de levar tudo para lá. Não temos caminhão gerador, câmera 35mm, técnicos suficientes. Tem uma câmera 16mm, mas que não é, não dá para usar. Não tem nada, nem na Paraíba, em Alagoas, no Ceará. Na Bahia, tem uma Super 16mm, boa, mas é só. Isso impossibilita a formação de mão de obra. Temos de importar tudo. Por isso quando o equipamento chega lá a gente aproveita para fazer alguma outra coisa.

Contracampo: Amarelo Manga gerou algum outro trabalho com esse equipamento?

Claudio Assis: Eu e o Walter Carvalho fomos filmar na Paraiba um curta dele que está virando um longa. É um filme chamado Cinema, sobre cinemas abandonados do Interior.

Contracampo: E a dificuldade de se captar estando em Recife?

Claudio Assis: É um terror. Os governos abrem as pernas para os diretores paulistas e cariocas para filmar no Nordeste, mas tratam a nós como coitadinhos e dão uma miséria para a gente. Também existe esse absurdo de, com o filme pronto, ser chamado de cinema pernambucano, não de brasileiro.

Contracampo: Mas você é contra diretores fora do Nordeste filmarem no Nordeste

Claudio Assis: Seria burrice e maniqueísmo achar isso. Sou contra é privilegiar os de fora e contra as visões deturpadas de nossa cultura

Contracampo: Como você conseguiu se viabilizar financeiramente nos seis anos em que ficou atrás de dinheiro para filmar?

Claudio Assis: É uma luta. Faço documentário, institucional, pesquisas, ganho aqui e ali, pouco, mas dá para viver. Tenho uma vida simples e não tenho grandes ambições. Quero apenas viver e vivo da minha profissão. Não quero "enricar", mas quero viver melhor.

Contracampo: Mas para viver melhor é preciso que os filmes tenham mais visibilidade.

Claudio Assis: No Brasil, é muito doido. Nos EUA, menos de 10% do mercado é para os filmes estrangeiros. Aqui, nós temos 10%. E a soberania nacional onde está? Era para a gente dizer: "aqui a gente só passa filme nacional e os americanos tem direito a 10%. Quer?". Mas não. Todo filme americano tem a bandeira, o hamburguer, o milk shake, fora a ideologia imperialista. Na televisão, está cheio de enlatado. E todo mundo aceita. Eles não querem só ganhar dinheiro, querem também dominar o mundo ideologicamente. É preciso botar ordem na casa e acabar com a bagunça

Contracampo: Seu filme custou R$ 450 mil. Não acha que alguns filmes excedem no orçamento?

Claudio Assis: Tem de ter um teto de R$ 3 milhões para filmes feitos com dinheiro público

Contracampo: Os diretores brasileiros têm fama de não irem ao cinema, não conhecerem o que está acontecendo no cinema mundial e não pensarem o cinema além dos próprios filmes. Você acha fundamental a formação como espectador antes de ir para a realização?

Claudio Assis: Não tive escola de cinema. Fiz dois anos de comunicação e dois anos de economia. Minhas aulas de cinema foram as discussões nos três cineclubes que ajudei a organizar em Caruaru e em Recife. Mas não tenho memória para cinema. Vejo muito filme que, sem lembrar, já tinha visto. Conheço diretores que fazem citações, o Brian de Palma faz isso. Admiro esses caras, mas não saberia fazer, nem quero. Quando estou fazendo, tudo o que vi está lá. Isso vai contruibuir para meu trabalho, mas não de forma racional, que me leve a seguir essa ou aquela linha. Não quero essa memória para mim.

Contracampo: E como foi a experiência como cineclubista?

Claudio Assis: Projetei muitos filmes. Pegava o trem com o equipamento para exibir filme na rua e em escolas.

Contracampo: E você tem esboçado um projeto de cinema a ser seguido?

Claudio Assis: Meu projeto é fazer filmes nos quais acredito. Quero ser verdadeiro. Tenho de acreditar em meus filmes. Mas tenho uma tendência a tratar as questões de frente, de cara, mostrar como a vida é, de preferência com questões ligadas ao povo, com as minhas idéias. Esse é meu universo, o meu caminho, isso é que bate na minha cabeça, sem visões românticas e idealizadas. Isso dá samba, dá maracatu, dá festa.

Entrevista realizada e transcrita por Cléber Eduardo.

http://www.contracampo.com.br/52/entrevistaclaudioassis.htm

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