sexta-feira, 12 de junho de 2009

Entrevista com Leo Falcão:::

Entrevista Leo Falcão

RECIFE COSMOPOLITA, ACANHADO E SENTIMENTAL
Por Rafael Dias.

Ele é sobrinho do diretor de teatro e cinema João Falcão e da roteirista Adriana Falcão. Os genes coincidem, e até ajudam, mas a comparação pára por aí. Apesar de um flerte com a técnica televisiva, Leo Falcão faz da experimentação da estética do cinema, seja no formato digital ou em película, seu cavalo de batalha. Chegou a fazer um “estágio” de residência no núcleo de Guel Arraes, na TV Globo (Rio), como roteirista. De volta a Pernambuco, foi pavimentando lentamente sua carreira como curta-metragista: venceu duplamente com Lugar Comum (2002) o prêmio de melhor curta do 6º Festival de Cinema do Recife (antigo Cine PE), pelo júri popular e oficial; e, dois anos depois, repetiu a dose, no mesmo festival, na categoria pelo júri popular com Lastnote.com, com o ator Gustavo Falcão e o então desconhecido Lázaro Ramos.

Agora em 2008, Leo Falcão vem mais uma vez com fome de tudo. Seu primeiro longa, o documentário Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cidade do Recife, baseado no livro homônimo do sociólogo Gilberto Freyre, é um dos favoritos a levar o troféu Calunga do Cine PE – Festival do Audiovisual, que será realizado no fim deste mês, no Centro de Convenções, em Olinda. A obra tem todos os elementos para conquistar o carisma, apesar de se tratar de um filme de fim não-comercial: captar um Recife contraditório, cosmopolita, tímido e expansivo em sua topografia de pontes, mangue e rios – uma cidade acanhada, aparentemente reclusa mas aberta a tudo o que vem de fora – como observou Freyre. Um recife passional, sentimental. Sobre o olhar freyriano sobre a capital pernambucana, Leo Falcão conta como foi adaptar a obra e revela suas expectativas, na entrevista exclusiva concedida por e-mail a O Grito!, que reproduzimos abaixo.

Como surgiu a idéia de fazer um longa baseado numa obra freyriana? O convite partiu da Fundação Gilberto Freyre?


Bom, sim, eu fui convidado pela Fundação Gilberto Freyre e pela agência de comunicação estratégica Massapê. O filme deveria ser uma adaptação da obra de Gilberto Freyre, com funções institucionais intrínsecas com o intuito de promover (1) uma redescoberta da cidade por seus próprios cidadãos e (2) mudar um pouco a perspectiva de turismo no Recife, reforçando o conceito de “turismo cultural” e voltado para a comunidade. Porém, como me deram total liberdade de estilo, a “encomenda”, por si já instigante, terminou virando uma peça autoral e expressiva, tomando proporções maiores pra todo mundo. Neste intuito, convidei o Fernando Weller, amigo recente, para escrever o roteiro comigo. Foi uma experiência ótima, o Fernando é muito cuidadoso e minucioso na construção do discurso, além de ter uma capacidade de visualização bem particular. Bateu também a boa e velha sintonia de visões de mundo e estilos de trabalho, tão importante para o trabalho em equipe. Enfim, foi ótimo.

O livro Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife foi lançado em 1934 e se tornou um marco por fugir do modelo convencional de guias turísticos, ao retratar a cidade com dados objetivos e topográficos, mas sobretudo antropológicos, de costumes, culturais e hábitos populares do Recife, com paixão e lirismo desprendidos. De todos esses aspectos, qual se sobressai no documentário? Você também pensou em fazer um filme vanguardista, em termos estéticos?


Sem dúvida, é a paixão que se sobressai, mesmo quando ele, Freyre, se atém aos aspectos mais objetivos e “científicos”, digamos assim. Mais do que prático e histórico, o guia é sobretudo sentimental, o que de certa forma traduz o espírito recifense, a meu ver. E traduz de várias formas, inclusive na própria contradição do discurso. A paixão nem sempre é apologética ou elogiosa, muitas vezes ela é crítica e conflituosa. Procuramos trazer também isto pro filme, buscando verdade mesmo nos artifícios de linguagem. Em relação à forma, acho difícil termos um filme “vanguardista” hoje em dia, mas, sim, procuramos quebrar alguns paradigmas do documentário, com enquadramentos menos usuais, pouquíssima intervenção objetiva na forma de créditos ou contextualizações geográficas e mantendo um foco especial na função sensorial do filme, mais do que na racionalidade das informações. Enfim, é um filme mais estético do que pragmático.

Acho que a espera é um caminho infelizmente natural para um país que não dispõe de um mercado cinematográfico maduro. Fazemos o que podemos fazer, no momento em que podemos

No livro, Gilberto Freyre descreve Recife da década de 30 como uma urbe de “recato mourisco, cidade acanhada”, de difícil acesso para os turistas que desejam desvendá-la; por outro lado, chama-a de cosmopolita e aberta a influências estrangeiras de holandeses, franceses, ingleses e novidades de fora. Você acha que esse paradoxo ainda vale para o Recife dos anos 2000, mesmo após a explosão do manguebeat nos anos 90 e da liberdade estética da nova geração de artistas pernambucanos de hoje? Como você trata dessa questão do mood recifense no filme?


Acho que qualquer paradoxo vale para o Recife, sobretudo este dos anos 2000. Essa contradição é refletida em cada depoimento, em cada plano ou seqüência sonora. E reflete um pouco nossa própria relação com a cidade, numa postura ora extremamente crítica, ora irremediavelmente apaixonada. Me parece natural que algo tão característico do recifense tenha vindo fora.

Em que locações do Recife o longa foi filmado? Todos os personagens são reais?


Sim, todos os personagens são “reais”, entendendo-se por “realidade” algo que é inevitavelmente dramatizado diante de uma câmera ou exposição qualquer. As identidades são aquelas, sem dúvida. Em termos de imagens da cidade, procuramos cobrir do Morro da Conceição ao bairro de Boa Viagem, mas nossa viagem terminou se localizando muito no Recife Antigo e no Centro, que é o coração da cidade, inclusive para o próprio Gilberto Freyre. Mas estamos bem representados, acredito…

Este é seu primeiro longa em quase dez anos de carreira na produção e direção de curtas. Por que o longo tempo de espera?
Acho que a espera é um caminho infelizmente natural para um país que não dispõe de um mercado cinematográfico maduro. Fazemos o que podemos fazer, no momento em que podemos. Tanto que os curtas se configuram, no Brasil, praticamente como um gênero à parte. De toda forma, acho que até dei sorte – tem muito cineasta talentoso no Brasil que passa a vida toda sem fazer longa, ou poucos longas, pelo menos. E é claro que não pretendo parar por aqui. Meu primeiro longa de ficção já está a caminho, vamos ver no que dá.

Na sua produtora Ruptura, você tem produzido e dirigido curtas (Lastnote.com, Vinil Verde, Eletrodoméstica) que procuram romper com o padrão da película imposto pelo mercado, optando pelo formato digital. Vocês também optaram por esse formato para este longa? Você acha que o cinema digital já é bem aceito pelos exibidores e avaliadores de festivais?


Optamos pelo digital, sim, pela particularidade do projeto e por sabermos que já temos uma qualidade suficiente para obter um excelente resultado nesse formato. Desde Lugar Comum (2002), temos apostado no digital como uma alternativa à película num país carente de recursos para o audiovisual. Mas temos consciência de que não se trata de pioneirismo: era, já naquela época, uma tendência mundial, à qual simplesmente estávamos antenados. Hoje o cinema digital já é uma realidade de fato inevitável. É muito gostoso filmar em película, mas os tempos são os tempos. Mas quem sabe um dia não dou uma de excêntrico e faço um filme em 35mm?

Eu enxergo o Recife ou como contingência ou como objeto de estudo. Nunca fui muito de jogar confete na nossa diversidade cultural evidente

Você já ganhou vários prêmios com curtas no Cine PE, e este seu longa é bem cotado para levar o troféu Calunga deste ano. O que acha do favoritismo? Como acha que o público irá reagir? Acredita que será um filme comercialmente palatável?


Procuro sempre não nutrir muitas expectativas a respeito de premiações – seja para controlar uma certa ansiedade egocêntrica (acho que isto é natural), seja por saber racionalmente que isto não é o mais importante. Pra mim, o maior prêmio é continuar trabalhando, com reconhecimento suficiente para viabilizar cada vez mais e melhores projetos. Sem demagogias, sério mesmo. Quanto à reação do público, bom, baseado em algumas projeções que fizemos para alguns grupos, creio que o público recifense vai reagir bem, se identificar e se emocionar. Se isto de fato acontecer, boa parte das intenções institucionais do filme (que toca no fato do recifense querer redescobrir sua própria cidade) já vai ter se efetivado, o que é ótimo. Em relação à “palatabilidade” comercial do filme (esta palavra existe mesmo?), bom, o filme, por enquanto, não tem intenções comerciais, pois ainda se encontra no âmbito institucional da Fundação Gilberto Freyre – entidade, como todos sabem, sem fins lucrativos. Até agora, é uma peça de utilidade pública, de forma que ainda não pensamos em que termos ele seria explorado
comercialmente. É algo que discutiremos com a Fundação e com todos os envolvidos, no tempo adequado.

Pernambuco está na moda há algum tempo. Ambientar um filme no Recife e na sua tão comercializada “multiculturalidade” pode ajudar a propagar a fama e a curiosidade pela obra, principalmente ao público estrangeiro e de outros estados?


Bom, acho que eu nunca acreditei muito nisso. Eu enxergo o Recife ou como contingência ou como objeto de estudo. Nunca fui muito de jogar confete na nossa diversidade cultural evidente ou em outras características populares. Mas, diferentes de outros filmes meus que não são “localizados” geograficamente, este caso é bem diferente, já que é da cidade em si que estou falando. Ainda assim, o filme me parece uma grande metáfora para qualquer cidade, mantendo um certo caráter “universal” presente nos meus trabalhos anteriores.

Sente alguma pressão por pertencer à família Falcão (do cineasta e diretor de teatro João Falcão, da roteirista e escritora Adriana e do ator Gustavo)? E o incomodaria se este seu primeiro longa fosse comparado ao filme A Máquina, de João Falcão?


Você se esqueceu da atriz Karina, do engenheiro Eduardo, do químico Eduardo e da médica Tânia, além dos outros onze irmãos do meu pai e do meu infindável número de primos (risos). Brincadeira à parte, enfim, eu respeito e admiro muito o trabalho dos meus tios, eles são parte de mim como outros mentores fundamentais que tive nesta vida, sem falar na ligação afetiva, é claro. Mas tenho consciência de que meu caminho é outro, ora se intercruzando com os deles, ora se afastando. Não sinto a menor pressão neste sentido. E, se por acaso ocorrer algum tipo de comparação (o que, na boa, acho que não vai ocorrer, porque se tratam de obras extremamente diferentes, me parece), vai ser fruto de uma leitura autônoma de alguém, o que, dada a natureza do meu ofício, vou ser obrigado a respeitar ou, pelo menos, dialogar.

Você finalizou dois curtas (Como As Coisas Funcionam e A Vida É Curta, este último já exibido na mostra Expectativa 2008 da Fundaj), está trabalhando em três longas e escrevendo um livro. E ainda dá aulas de roteiro cinematográfico e presta consultoria em criação de peças audiovisuais. Você é um workaholic. Como consegue dar conta de tudo?


Workaholic, eu? Imagina! Mas, bom, muitos me perguntam como eu consigo dar conta de tudo, e eu nunca consigo responder de forma convincente, até porque uma das “técnicas” que utilizo é não pensar muito a respeito. Vou fazendo o que aparece, tentando focar no que realmente me interessa. Ajuda também o fato de dormir pouco, mas acho que tem a ver com uma certa dispersão natural mesmo, e de não abrir mão de paixões e desejos, como a música, literatura e a vida acadêmica. Enfim, melhor parar de falar sobre isto antes que eu comece a ficar cansado…

O que você acha da novíssima geração de cineastas pernambucanos que vem despontando nos festivais, como Leo Lacca, Marcelo Lordello, Leo Sette, Gabriel Mascaro e Daniel Bandeira? É uma movimentação sazonal (mais um ciclo do Recife, fadado a morrer) ou tende a prosperar com os incentivos estaduais e de editais de fomento ao cinema pernambucano? Você enxerga algum denominador comum estético neste novo grupo?


Gosto muito dos meninos todos, tanto deles como pessoas quanto como realizadores. O que me faz acreditar que não se trata de um ciclo fadado a morrer é que esse pessoal tem referência cinéfila e sabe conduzir as coisas seriamente, ajudando a construir um cinema assim dito “vigoroso”, que é este cinema pernambucano contemporâneo. Se os editais e atitudes políticas imediatas conseguirem ir dando conta de todo este potencial natural deste cenário inquieto, muito mais pode ser feito, bastando ver o que essa geração tem produzido. De denominador comum, o que eu enxergo é um pouco o que sempre enxerguei por aqui: diversidade e profundidade.

Você cria roteiros para jogos eletrônicos. É um hobby ou pretende levar a sério?


Acho que nunca tive um “hobby” por muito tempo – termino sempre levando uma atividade constante a sério, enfim. Bem, isso faz parte do meu projeto de mestrado, que estou concluindo até maio, espero. E o que me interessa em jogos eletrônicos é a complexidade narrativa que eles podem trazer. Sim, pretendo levar isto também a sério.

O longa já está programado para passar em outros festivais? O que pretende fazer depois do Cine PE?


Ainda é cedo para dizer. Estamos trabalhando na estratégia de lançamento internacional do filme e vamos chegar numa decisão logo, logo. Mas a idéia é circular ao máximo, dando o máximo de visibilidade ao filme e, conseqüentemente, à cidade.

Fonte:

http://www.revistaogrito.com/page/06/04/2008/entrevista-leo-falcao/

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